O bairro da Cachoeirinha foi arruado por volta de 1892. Eduardo Ribeiro, governador, ordenou ao engenheiro Antonio Joaquim de Oliveira Campos que elaborasse um plano para ocupação de enorme área (mais de 1.500m2), objetivando criar novo bairro. Ganhou o nome de Cachoeirinha, devido ao fato de haver ali perto pequena queda de água.
Em termos de entretenimento, a Cachoeirinha foi o primeiro bairro a conhecer um cinema. Aconteceu em 1909, com a inauguração do Recreio Amazonense. E, também, o último, pois o cine Ipiranga fechou no início dos anos 1980.
Recreio Amazonense (1909)
Em 6 de março de 1909, a firma Botelho & Mendes inaugura na rua Municipal (atual av. Sete de Setembro) nº 55 ou 155, o Recreio Amazonense. O matutino Correio do Norte (16 jun.) propaga que o Recreio funcionou à praça Floriano Peixoto (desaparecida com a construção do Hospital Geral de Manaus), próximo à capela do Pobre Diabo, “profusamente iluminado à luz elétrica em forma de estrela ao alto da porta de entrada”.
O Recreio funcionava ao ar livre todas as noites, utilizando aparelho de projeção Gaumont. Exibia cinco fitas ao preço de 1$000 (mil réis) e, camarotes, a 5$000 (cinco mil réis). Exceção feita aos espetáculos de gala, quando cobrava a entrada a 2$000 (dois mil réis). O dono contribuía por espetáculo com a quantia de 100$000 (cem mil réis) para a Santa Casa de Misericórdia(!). A empresa, em contrapartida, era compensada na tarifa da energia elétrica.
Apesar de ser considerado o “centro de diversão” das famílias amazonenses, o Recreio funcionou pouco mais de seis meses. Encerrou as atividades em 5 de setembro, quando sua aparelhagem foi levada para a cidade de Itacoatiara.
Essa diversão somente voltaria a Cachoeirinha em 1946, com a inauguração, em 5 de outubro, do Cine Operário. Mantido pela Associação Cristã de Moços, funcionou na sede do Círculo Operário de Manaus, situada na atual av. Castelo Branco, próximo da outrora conhecida “Curva da Morte” (onde se encontra o bar do Carvalho).
Não podia ser diferente, inaugurou com o filme A vida de Dom Bosco. É desconhecido o período de sua existência.
Cine Ipiranga (1959-1983)
Inaugurado o cine Vitória em Educandos, A. Bernardino decide construir no bairro da Cachoeirinha o maior cinema de Manaus, o Ipiranga. Há, contudo, uma controvérsia quanto ao total de poltronas nesta sala. O Jornal do Commércio (6 out.1959) informa que o Ipiranga possuía 1.850 lugares. Mas, o mesmo periódico, dois dias depois, assegura que o mesmo possuía 50 cadeiras a mais.
A Tarde, de Aristóphano Antony, contradiz os números do concorrente para contar 1.870 lugares. O certo, segundo depõe Adriano Bernardino Filho ao matutino A Notícia (7 maio1975), é que no Ipiranga existiam somente 1.500 lugares.
O Cine-Teatro Ipiranga foi construído em tempo recorde na praça General Carneiro com a frente para a avenida Carvalho Leal. Executado pela construtora de Antonio Barros dispunha de quatro reforçados renovadores de ar (Gaumont-Keller); de uma eletrola de alta fidelidade (hi-fi) no salão de projeção, que media 48 metros de comprimento, por 22 de largura; e com poltronas assentadas em formato côncavo, inovação que objetivava a melhor visibilidade pelo espectador.
Segundo informações, foram gastos cerca de 10 milhões de cruzeiros. Nesse montante, estão inclusos a instalação de dois geradores de energia, para utilização em caso de emergência; sistema de som e iluminação; dois projetores da marca Solidus, para exibição em diversos sistemas; e a tela, medindo 18mx8m40. Enfim, foi instalado à entrada do prédio um bar para a venda de sorvetes e refrigerantes.
Em 5 de outubro de 1959, a imprensa baré foi conhecer as instalações do mais novo cinema de Manaus. A inauguração ocorreu no dia 8, às 10h, quando foi servido um coquetel. Esteve presente o governador Gilberto Mestrinho (1959-1963), que cortou a fita de inauguração, ao lado dos diretores Aurélio Antunes e Adriano Bernardino. Em sessão especial, foi exibido o filme Adeus às Armas, com três horas de duração e estrelado por Rock Hudson (1925-1985), Jeniffer Jones (1919-) e Vittorio de Sica (1901-1974). Na sessão das 20h, aberta ao público, o mesmo filme foi exibido. Para evitar tumultos, a venda de ingressos para a inauguração foi realizada no Guarany, ao preço de 10 e 20 cruzeiros.
No primeiro aniversário, em 1960, a empresa repetiu o procedimento do Cine Guarany, preparando diversificada programação cinematográfica. E mais. Nas quatro sessões do dia distribuiu brindes e sorteou prêmios aos frequentadores. Na matinal, afora o filme O Milagre da vida (Warner Bros), foi exibido o desenho Cão e Gato e um Complemento Nacional. Às 13h, sessão dupla: Rodan, o monstro do espaço e O Milagre da vida, e às 16h e na “sessão colosso” das 20h, novamente Rodan, precedido de um Complemento Nacional e o documentário de Walt Disney Escadaria dos Andes – Portugal.
A comemoração de aniversário do Ipiranga ocorria em 1º de outubro e se prolongava por oito dias. No dia 12, para comemorar o Dia das Crianças, o governo do Estado brindava as crianças com entrada gratuita.
O aniversário do Ipiranga ocorria em 1º de outubro, mas se prolongava por oito dias. No dia 12, para comemorar o Dia das Crianças, o governo do Estado brindava as crianças com entrada gratuita.
Mario Adolfo, jornalista criador do suplemento infantil “Curumim”, relembrou no jornal Amazonas em Tempo (13 out.2002), um 12 de outubro no cine Ipiranga:
Na infância pobre lá da Cachoeirinha, o grande presente do dia era a matinal (sessão de cinema às 9h) do Cine Ipiranga com portas abertas, oferecidas pelo Governo do Estado. Para conduzir as crianças tinha ônibus de graça. Eu e meu amiguinho Simão Pessoa, que morava na rua Parintins, esquina com a rua Borba, onde eu morava, não precisávamos de ônibus. Andávamos três quarteirões a pé na maior felicidade. Chegávamos suados, mas felizes ao maior cinema da cidade, que tinha na parede a reprodução do famoso quadro de Pedro Américo com a cena do “Grito do Ipiranga”. Próximo à tela, dois buracos de onde saía uma ventania infernal produzida por dois ventiladores gigantes.
Debaixo do braço, exemplares de Kid Colt, Tarzan, Zorro, Fantasma, Cavaleiro Negro, Roy Rogers, Antar e Águia Negra para trocar com outros garotos na saída. Ainda sinto o gosto do bombom pippers (de menta) ardendo à boca, quando lembro de um desses 12 de outubro, quando assistimos O Homem que matou o facínora, com John Wayne. Quando o grandalhão com cara de índio acertava o queixo do bandido, a gente assobiava usando como recurso o papel do bombom. Ou então, batíamos na cadeira de madeira que estava vazia ao lado. Era uma barulheira infernal. (...)
N
este cine, ocorreu o avant-premiére especial. Em 1965, quando o embaixador da URSS transitou por Manaus, foi exibido o filme russo Ivan, o Terrível, estando presente o Governador Arthur Reis (1964-1967).
No palco, também passaram cantores famosos: Carlos Nobre, que realizou show grandioso na noite de 22 jan. 1961, apresentado pelo radialista e animador cultural Ivens Lima; Moacyr Franco, em 1962; Waldik Soriano (em diversas datas); Altemar Dutra, em 1961.
Adriano Bernardino Neto, em depoimento A Crítica (17 abr. 2005), relembra uma malsucedida apresentação de Waldik Soriano no palco deste cinema: Ele [Waldik] gostava de beber uísque. Em determinada ocasião, ele ganhou uma garrafa e desapareceu na hora do show. Meu pai [Adriano Filho] foi encontrá-lo em um hotelzinho do centro, completamente embriagado. Ficou tão irritado que o jogou com roupa e tudo debaixo do chuveiro e o trouxe para cantar.
O quarteto de Os Trapalhões (1976, 1978 e 1981), por ocasião do lançamento de suas películas, realizava o “pré filme”. Marcou época também, o musical Confusão na taba, em 1972.
O advento da Zona Franca e o surgimento da televisão trouxeram a decadência ao cinema em Manaus. O Ipiranga, assim como outras salas, conheceu o esvaziamento de público. Os shows de artistas nacionais também foram perdendo espaço. Nessa época, fazia sucesso os filmes de bang-bang italianos, os chamados “Western Spaghetti”, bem representado por Django.
Em 1970, o prefeito de Manaus, Paulo Pinto Nery (1965-1972), inicia uma campanha contra a má conservação e a falta de conforto nos cinemas. Contava com o apoio do Instituto Nacional do Cinema (INC) e da imprensa. Quase diariamente circulavam notas desabonadoras sobre as condições de higiene das salas . O Jornal (4 dez. 1970) noticiava:
Temos feito campanha permanente contra o péssimo estado de nossos cinemas: sujos, quentes, mal-cheirosos. É uma vergonha, para uma capital em desenvolvimento acentuado, como de Manaus. Todos os estabelecimentos têm melhorado, menos os cinemas que, com o tempo, vão naturalmente piorando. Piorando em tudo. A população reclama a situação, porém não é ouvida. Uma tristeza. E como não há para onde ir, todos são obrigados a suportar os cinemas, assim como se apresentam, despidos de requisitos de conforto e higiene”.
Bem mais surpreendente foi que, em março, o controle acionário da A. Bernardino passou ao grupo Philippe Daou S.A. Daou decide negociar algumas salas: o Vitória, em Educandos, passa ao domínio de Moto Importadora /Credilar; o Avenida, na avenida Eduardo Ribeiro, para o firma Benchimol, Irmão & Cia.; e o Palace, no Boulevard Álvaro Maia, ao mando da Casas do Óleo (CO). Dessa maneira, são mantidos em atividade apenas o Ipiranga e o Guarany, que seriam parcialmente reformados.
Segundo publicação jornalística, o prédio do Ipiranga seria dividido em duas partes. Uma, serviria de auditório da TV Amazonas, e, a outra, sala com menores proporções, tal como já sucedia em outros Estados. O esquema, no entanto, não saiu do papel.
Depois de pequenos reparos feitos no prédio do Ipiranga, o novo dono promove mudanças na programação. As produções simplórias de Mazzaropi e os faroestes italianos foram substituídos por dois gêneros de filmes: a pornôchanchada, produzida em São Paulo, e o Kung Fu "made in Japan".
Bernardino Filho havia adquirido parte do grupo Daou, disposto a não transformá-lo em supermercado. Desejava continuar como cinema. Em depoimento, Adriano expõe o plano de reduzir a metade a capacidade do cinema, bem como, construir um mini shopping, uma choparia e outra sala. Essa, daria acesso ao salão separado apenas por um vidro, para que os frequentadores assistissem aos filmes ou fumando ou tomando cerveja.
Ainda na entrevista, Bernardino prometia continuar no ramo cinematográfico, para isso, procurava um local no Centro para abrir nova sala de exibição. Esta, com um número reduzido de lugares, porque, segundo o próprio, a manutenção de um cinema era muito dispendiosa.
Em razão de sua grandiosidade, o Ipiranga, no final dos anos 1970, torna-se a casa cinematográfica mais popular de Manaus. Essa popularidade ficou patenteada quando do lançamento do filme King Kong, recorde de bilheteria desse cinema em toda sua existência.
Lançado nacionalmente em 2 de setembro de 1977, com ampla divulgação nos jornais e na televisão, um dos motivos de seu sucesso. Antes de cada sessão, enormes filas formavam verdadeiras “cobrinhas humanas”; principiavam em frente do cinema, ultrapassavam a rua Barcelos e findavam na avenida Castelo Branco. A respeito desse fato, A Crítica (13 set.), na coluna Sim & Não, convoca o órgão controlador de preços (a extinta Sunab) para observar a desordem que imperava no Ipiranga e os abusos cometidos pela proprietária. Resultado: a Sunab agiu e multou a empresa.
“No Cine Ipiranga, onde está passando King Kong (...), as filas estão descambando para o tumulto que se transfere para dentro do salão de projeção, já que as entradas estão sendo vendidas em muito maior número por sessão do que a capacidade de lotação do cinema. Vai lá Sunab!”.
Texto de autoria de Ed Lincon.
A campanha prospera. Em 1972 fecham as salas Ideal e Popular. Em fevereiro de 1973, circula na cidade o rumor de que o Ipiranga fecharia as portas devido a baixa frequência. Ao desmentir a publicação, a empresa aproveita para lançar um filme que apenas serviu de chacota: O Preço da glória.
Como aconteceu a outros cinemas de Manaus, o fechamento definitivo do Ipiranga foi inevitável e melancólico. Bem diverso da inauguração, morreu no Dia de Finados de 1983 em triste sessão noturna, em que poucas pessoas na platéia assistiram ao pornô Corrupção de menores.
Além da baixa frequência, outros fatores também contribuíram para o encerramento das atividades do cinema da Cachoeirinha, entre esses, pode-se destacar: gasto bastante elevado com a energia elétrica; multas em decorrência dos boxes instalados no prédio; o aluguel de filmes e a concorrência de cinemas instalados no centro da Cidade.
Em depoimento ao matutino A Notícia (8 dez.1983), Elza Bernardino, esposa de Adriano Bernardino Filho, comenta o encerramento deste cinema e as esperanças dela para o futuro:
“O público do Ipiranga já havia diminuído pela fraca qualidade dos filmes e a situação foi ficando cada vez mais difícil, tornando-se insustentável a manutenção do prédio, que apesar de estar em perfeito estado, era pouco frequentado.
(...) Enquanto não houver interesse pelo prédio, o cine Ipiranga continuará fechado. A intenção é arrendar ou vender a alguém que esteja disposto a utilizá-lo como cinema, pois “nada foi mexido”, não tem nada mudado e será triste vê-lo transformado em supermercado ou qualquer outra coisa. Infelizmente o perigo é esse, não tem nada resolvido sobre o destino do Ipiranga. Se puder reabrir, vai ser muito bom, pois além de ser importante para a memória de Manaus, causa uma alegria muito grande aos moradores locais, que já se acostumaram com o seu funcionamento mesmo sem um grande público".
Três anos depois, 154 cadeiras que pertenceram a este cinema foram instaladas no Teatro dos Artistas e dos Estudantes (atual Teatro Américo Alvarez), situado na rua Ramos Ferreira, quase esquina da rua Major Gabriel. Quanto aos projetores, ambos foram transferidos para o cine Veneza (boulevar Amazonas) onde ainda permanecem; bem danificados e entregues ao abandono no que restou da antiga sala de projeção.
Com o fechamento do Ipiranga, o último remanescente de áureos tempos, encerrou-se o ciclo dos cinemas de bairro. O progresso, representado pela televisão e outros recursos tecnológicos, rendeu a velha forma de apreciar as imagens.
HOJE
Abaixo, local onde funcionou o Cine Ypiranga.
Confirmando os temores da esposa de Bernardino, o prédio onde funcionou o cine Ipiranga permaneceu fechado por dois anos, quando foi vendido ao empresário Roberto Daou. Reformado com esmero viu-se transformado em loja de eletrodomésticos da TV Lar.
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